Letra morta
2014
Juan Pérez Agirregoikoa Diretor de fotografia José Mari Zabala
Juan Pérez Agirregoikoa realizou, na periferia de São Paulo, um filme baseado em O evangelho segundo São Mateus (1964), de Pier Paolo Pasolini. O novo filme conserva alguns elementos formais e estéticos do original, mas o roteiro foi reescrito deslocando o foco para alguns versículos bíblicos não levados em conta pelo diretor italiano. Estas passagens – como, por exemplo, a parábola que premia o investidor e castiga o que fracassa na empresa – constituem para Pérez Agirregoikoa um dos fundamentos discursivos do capitalismo ocidental.
Nos últimos treze anos, com o prévio abandono da abstração, Juan Pérez Agirregoikoa vem trabalhando na subversão de discursos relativos ao poder e à obediência. Essas intervenções consistem, às vezes, em alterações mínimas introduzidas em frases mais ou menos conhecidas, como quando subtrai o “não” de alguns dos dez mandamentos judaico-cristãos. Outras vezes, ao contrário, realiza uma substituição: contrata um coro de câmara para cantar quatro temas do cancioneiro popular espanhol e basco, mas com letras constituídas por trechos de textos de pensadores materialistas franceses. Assim, se sobrepõem, ao fundo folclórico original, questões como a matéria, o uso da energia libidinal pela economia, a prática como matriz da aparência e da revolução.
Mas, longe de ensinar o modo “correto” de pensar, Pérez Agirregoikoa desestabiliza todas as referências, inclusive aqueles lugares-comuns sobre os quais poderia chegar a existir um consenso quase universal. Assim, sobre uma grande tela, pode listar todas as guerras empreendidas pelos Estados Unidos no século 20 e, em outra, escrever: “o capitalismo é fabuloso”. Em lugar da adesão, o que essas operações buscam é pôr em crise visões de mundo cristalizadas que impedem qualquer possibilidade de transformação individual e social.
No novo filme, a mesma operação está em jogo: um questionamento da visão de mundo imposta por uma religião que, muito frequentemente, aponta para a diminuição de potencialidades individuais e comunitárias. – SGN